A pandemia de Covid-19 obrigou-nos a dar uma volta a nós próprios, às nossas casas, à nossa família, ao mais elementar das nossas vidas. As estações passaram de um dado meteorológico para uma condicionante dos nossos riscos e comportamentos.
É neste contexto que surge o projecto 9x9x9, baseado em haikus de poetas japoneses como Yosa Buson e Matsuo Bashô, em tankas femininos e em haikus contemporâneos.
9x9x9 porque se trata de uma equipa de 9 profissionais das artes, num projecto a 9 meses, com 9 haikus por mês, resultando em 81 micro-peças vídeo-musicais de poucos segundos.
Alvo de grande interesse para muitos escritores portugueses, o haiku como género é um tipo de poema profundamente ligado às estações do ano. E o Outono, estação de partida, foi, provavelmente, o mais assustador do último século, com a promessa de uma reclusão obrigatória e as previsões catastróficas para um inverno com muitas perdas humanas. O MPMP apresenta agora os primeiros vídeos desta reflexão musical.
Com música original, em estreia absoluta, dos compositores Ana Seara e Luís Salgueiro (a solo ou a quatro-mãos), interpretada por solistas do Ensemble MPMP — Jan Wierzba (piano e direcção artística), Miguel Costa (clarinete), Fernando Brites (acordeão), Daniel Bolito (violino) —, captada e editada por João Dionísio (som) e Mário Gajo de Carvalho (imagem), cerzida curatorialmente pela historiadora e gestora cultural Tatiana Bina.
bastidores da gravações
Com o apoio do Programa Garantir Cultura
O fim do Verão e o início de uma nova estação são manifestos na queda das primeiras folhas. Momento traduzido aqui pelo compositor Luís Salgueiro.
“Em lixo comum
começam a transformar-se
as flores que tombaram.”
Tsuji Momoko (1945-) FREIRE, Luísa. Haiku : séculos XVII a XX. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.128.
O fecho e reclusão do começo do Outono também se manifestam no aumento das correspondências à distância, aqui interpretadas por Ana Seara.
“Folhas a cair,
folhas e folhas caindo
também na minha cama.”
Mitsuhashi Takajo (1899-1972) FREIRE, Luísa. Haiku : séculos XVII a XX. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.78.
O começo do Outono também traz as saudades — do Verão, das pessoas. Composto por Luís Salgueiro.
“Embora não haja
um só momento sequer
sem sentir saudades,
que estranho é, mesmo assim,
este entardecer de Outono.”
Ono no Komachi (834?-?) FREIRE, Luísa. Tanka: séculos IX a XI. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.25.
As longas horas ao computador tornaram-se o meio de comunicação dominante durante esta fase. No-lo recorda Ana Seara.
“As noites de Outono
têm fama de ser longas —
nada mais fizemos
que olhar um para o outro
e é madrugada já.”
Ono no Komachi (834?-?) FREIRE, Luísa. Tanka: séculos IX a XI. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.26.
A necessidade da volta de contacto com a natureza é uma das consequências das restrições impostas nas grandes cidades. Com a música de Luís Salgueiro, o piano de Jan Wierzba.
“Ao olhar a lua,
no meio do céu, solitária,
pela madrugada,
senti-me completamente
em unidade com ela.”
Isumi Shikibu (974? – 1034?) FREIRE, Luísa. Tanka: séculos IX a XI. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.50.
A necessidade de contacto humano, para além das fotos e das redes sociais, tal como apresentada por Ana Seara.
“O que eu anseio
é o som da tua voz.
Esse teu rosto,
que vejo tão claramente,
não diz uma só palavra.”
Isumi Shikibu (974? – 1034?) FREIRE, Luísa. Tanka: séculos IX a XI. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.68.
O fecho de vários estabelecimentos obrigou a um maior número de refeições em casa e da produção de produtos em ambiente doméstico.
“O som da pilha de pratos
a tinir uns contra os outros —
noite de Outono.”
Yoshino Yoshiko (1915 – ) FREIRE, Luísa. Haiku : séculos XVII a XX. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.97.
Uma outra consequência: a presença de crianças em casa, a educação à distância e a sobrecarga do trabalho feminino. Interpretação de Ana Seara.
“Coso à luz do candeeiro
e ensino meu filho a ler —
chuva no Outono.”
Sujita Hisajo (1890-1946) FREIRE, Luísa. Haiku : séculos XVII a XX. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.67
As relações familiares tornam-se a principal fonte de convivência humana, aqui segundo Luís Salgueiro.
“A mãe e o filho
à noite, jogando cartas —
a raposa uiva.”
Hashimoto Takako (1899-1972) FREIRE, Luísa. Haiku : séculos XVII a XX. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.71.